Em regra, não. Trata-se de uma das situações mais controversas e emocionalmente delicadas do direito civil. A possibilidade de um filho pedir usucapião do imóvel dos próprios pais confronta diretamente dois pilares fundamentais da sociedade: o direito de propriedade e os vínculos familiares baseados na confiança e no afeto.

 

É muito comum, no cotidiano jurídico, que filhos permaneçam em imóveis dos pais por anos, ou até décadas, especialmente em contextos de proximidade familiar, cuidados na velhice, dependência financeira ou mesmo como etapa de transição para uma vida autônoma.

 

No entanto, a ocupação do imóvel, nesses casos, não se reveste das características exigidas para fins de usucapião, pois, via de regra, é fruto de mera permissão, tolerância ou comodato gratuito, ainda que tácito.

 

Segundo o Código Civil, em seu artigo 1.208, fica estabelecido a respeito da mera permissão não configurar posse, conforme exposto a seguir:

 

“Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância, assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”.

 

Essa previsão legal demonstra que, sem o elemento subjetivo da posse qualificada, o chamado animus domini, não há como reconhecer usucapião. A permanência prolongada no imóvel dos pais não altera, por si só, a natureza da detenção.

 

Assim, mesmo que o filho contribua com despesas do imóvel, faça reformas ou o utilize com exclusividade, essas condutas não bastam para configurar animus domini se não houver a clara exclusão dos pais do exercício da posse e um rompimento inequívoco da relação de tolerância.

 

A Jurisprudência reforça a tese que para validar uma usucapião familiar exige prova robusta e inequívoca.

 

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu que:

 

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. REQUISITOS. NÃO CONFIGURAÇÃO DA POSSE COM “ANIMUS DOMINI” . PERMISSÃO FAMILIAR. ATO DE TOLERÂNCIA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. Os requisitos para a usucapião extraordinária são os seguintes: posse mansa e pacífica; ininterrupta com “animus domini” e sem oposição por 15 anos . A posse usucapível apresenta características próprias, não sendo os atos de mera tolerância, como o caso de permanência por permissão familiar, capazes de ensejar a usucapião. Recurso conhecido e não provido.

(TJ-MG – AC: 50033193520198130470, Relator.: Des.(a) Gilson Soares Lemes, Data de Julgamento: 11/10/2023, 16ª Câmara Cível Especializada, Data de Publicação: 17/10/2023).

 

De modo semelhante, o Tribunal de Justiça de Goiás concluiu que:

 

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. ANIMUS DOMINI. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO . OCUPAÇÃO DECORRENTE DE MERA PERMISSÃO OU TOLERÂNCIA DO TITULAR DO DOMÍNIO. INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS. INOVAÇÃO RECURSAL. I – Nos termos do artigo 1 .208 do Código Civil, os atos de mera permissão ou tolerância não constituem modos de aquisição de posse e, por consequência, impedem a usucapião. II – Demonstrado nos autos que os autores/apelantes utilizam o imóvel para moradia por mera permissão dada pela ré/apelada, decorrente de relação de parentesco, não há falar-se em aquisição do domínio por usucapião, em razão da ausência do requisito relativo à posse qualificada pelo animus domini. II – Revela-se incabível o enfrentamento por esta Corte de Justiça de matéria não abordada no juízo de primeiro grau, sob pena de supressão de instância. APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDA EM PARTE, E NESTA, DESPROVIDA . SENTENÇA MANTIDA.(TJ-GO – Apelação Cível: 5003473-50.2021.8 .09.0064 GOIANIRA, Relator.: Des(a). DESEMBARGADOR JEOVA SARDINHA DE MORAES, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: (S/R) DJ).

 

Quando pode haver usucapião entre pais e filhos?

 

Ainda que a regra geral afaste essa possibilidade, há exceções, raras, que merecem ser tratadas com cautela. O reconhecimento da usucapião entre familiares só se torna viável se houver a transformação da detenção em posse qualificada, de forma incontestável. Para tanto, devem estar presentes os seguintes elementos:

 

 

Na prática, a principal barreira jurídica é a dificuldade de provar que a posse exercida pelo filho deixou de ser tolerada e passou a ser exclusiva e contrária à vontade dos pais. A mera ausência de oposição não basta. É preciso demonstrar que os pais sabiam da pretensão dominial do filho e, mesmo assim, permaneceram inertes por tempo suficiente para consolidar a prescrição aquisitiva.

 

Sem essa demonstração, a Justiça tende a manter a titularidade formal do imóvel com os pais, preservando os laços familiares e evitando o uso deturpado da usucapião como mecanismo de apropriação patrimonial indevida.

 

Por isso, é fundamental formalizar os entendimentos, mesmo entre familiares, por meio de contratos de comodato ou termos de usufruto, a fim de proteger o patrimônio e evitar litígios.

 

Autora: Dra. Cintya Grisoste Mendanha Vieira OAB/GO nº 60.439-A

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