A imposição da instalação de rastreadores nos veículos objeto de contratos de financiamento bancário configura prática abusiva e, sobretudo, inconstitucional, especialmente quando se considera que tais contratos são, em regra, contratos de adesão.
Nos contratos de adesão, as cláusulas são previamente elaboradas pela instituição financeira, sem qualquer possibilidade de negociação individual pelo consumidor. O adquirente, na ânsia de obter o crédito e o bem, apenas aceita as condições impostas, muitas vezes sem plena ciência ou possibilidade de discussão sobre os termos. Nessa hipótese, o consumidor perde o direito de decidir sobre aspectos fundamentais do contrato, como o monitoramento permanente de sua localização, sendo forçado a aceitar, de forma compulsória, a instalação do rastreador, sob pena de não obter o financiamento.
Essa prática é manifestamente injusta, pois viola o princípio da autonomia da vontade e retira do consumidor a liberdade de escolha sobre questões que afetam diretamente a sua privacidade e dignidade. Não se pode admitir que, sob o pretexto de proteção da garantia fiduciária, o banco se arrogue o poder de monitorar os deslocamentos do consumidor, invadindo sua esfera íntima e restringindo indevidamente seu direito constitucional à privacidade, previsto no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Portanto, ainda que o veículo permaneça alienado até a quitação do contrato, a posse direta e o uso pleno pertencem ao adquirente, que não pode ser submetido a uma espécie de vigilância eletrônica disfarçada de medida de segurança.
A inconstitucionalidade dessa exigência torna-se ainda mais evidente quando se aplica, por analogia, o entendimento firmado pelo juiz federal João Batista Gonçalves, da 6ª Vara Federal Cível de São Paulo, no processo nº 2007.61.00.023089-9, da ação pública cominatória, que resultou na decisão divulgada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3).
No referido caso, discutia-se a obrigatoriedade generalizada de instalação de rastreadores em veículos novos, sob o argumento de segurança pública. O magistrado, ao analisar a questão, foi categórico ao afirmar que não é razoável a imposição de medidas que afetem a intimidade das pessoas, como permitir o rastreamento eletrônico de seus deslocamentos, pois isso representaria violação ao direito fundamental à privacidade.
Ainda segundo o juiz, a medida afrontaria o direito de ir e vir, protegido pela Constituição, e colocaria os cidadãos sob permanente estado de vigilância. Embora o caso envolvesse a obrigatoriedade generalizada imposta pelo poder público, sua lógica se aplica perfeitamente ao contexto contratual: se a própria autoridade pública não pode impor, sem justificativa legal específica, a instalação de dispositivos que permitam rastreamento, com muito mais razão não pode fazê-lo uma instituição financeira, no âmbito de um contrato de adesão, ainda que para proteger seu crédito.
A comparação reforça a inconstitucionalidade da prática: se o Estado, com poderes de polícia e segurança pública, não pode invadir a privacidade do cidadão dessa forma, tampouco pode fazê-lo um ente privado, como um banco, em uma relação contratual assimétrica e marcada pela vulnerabilidade do consumidor.
Portanto, a imposição compulsória de rastreadores em veículos financiados, especialmente quando realizada através de contrato de adesão, representa manifesta afronta aos direitos fundamentais do consumidor, sendo, por isso, inconstitucional e passível de nulidade absoluta. Trata-se de prática que desconsidera a dignidade da pessoa humana, a liberdade contratual equilibrada e o direito à privacidade, pilares indispensáveis ao Estado Democrático de Direito.
Autora: Dra. Cintya Grisoste Mendanha Vieira OAB/GO nº 60.439-A Para mais informações ou dúvidas entre em contato com a nossa equipe através do telefone: (61) 9 8265-7168 Dra. Cintya Fonte: https://www.jfsp.jus.br/comunicacao-publica/indice-noticias/noticias-2009/17042009-rastreador-em-veiculos-nao-e-obrigatorio